domingo, 19 de junho de 2011

BOTÍN: O Restaurante mais Antigo do Mundo

Numa ruela no centro antigo de Madri, uma taverna abre todos os dias para o almoço e para o jantar há 271 anos, sem nunca ter mudado de nome ou de ramo de atividade. Um recorde que foi registrado pelo Guiness. Provavelmente o único lugar e a única época em que não existiram restaurantes foi o Jardim do Éden, durante o período de fartura do pomar, que acabou na confusão que todos conhecem. Mas bastou pintar o primeiro homem com habilidade para transformar grãos, frutos e seres da Terra em pratos saborosos e pronto: surgiu a primeira mesa. Daí que falar em restaurante mais antigo do mundo é quase uma heresia, já que o primeiro, de verdade, ficou escondido em algum nicho insondável da História.

Ao que consta, porém, não há nenhum restaurante fenício, sumério ou mesopotâmico remanescente no século 20. Isso explica por que o critério para definir qual é hoje, de fato, o restaurante de mais longa data seja o seu período de funcionamento nessa atividade específica, contando de 1996 para trás. Quem fez esse trabalho foi o Instituto Guiness, que, como se sabe, é uma entidade especializada em cavucar recordes, dos mais curiosos aos mais inúteis. Assim foi que, numa determinada tarde no início dos anos 90, um emissário do Guiness surgiu na Calle de Cuchilleros, 17, no coração do Casco Viejo (o bairro mais antigo) de Madri, e entregou ao proprietário um diploma que oficializava: a Antiga Casa Sobrino de Botín era, reconhecidamente, o restaurante mais antigo do mundo.

A visita não mudou em nada a rotina da velha taverna, que sempre teve lotação completa, bons assados e bons vinhos. Mas o Botín - que é como tanto espanhóis como gourmets do mundo todo chamam o lugar ganhou um novo diploma para pendurar em sua parede e passou a constar de mais alguns livros ao redor do mundo. O que, aliás, não é exatamente uma novidade na história desse estabelecimento, que funciona desde o ano de 1725 no mesmo edifício, com a mesma atividade e - o que lhe garantiu o recorde - com a mesma capacidade de atrair clientes. Na verdade, a grande glória do restaurante do ponto de vista literário é ter sido citado na cena final do livro The Sun Also Rises, de Ernest Hemingway. Mas que entrar no Guiness também tem lá o seu valor, ah, isso tem!

Até porque isso faz lembrar como era o mundo quando o Botín abriu suas portas. O Brasil, por exemplo, era uma esquecida colônia, onde grupos de aventureiros organizavam expedições ao interior, no que mais tarde seria chamado de período das entradas e bandeiras. A América do Norte estava dividida entre ingleses, franceses e espanhóis e cidades como São Francisco ainda nem haviam sido fundadas. O centro do mundo era mesmo a Europa, perdida em intermináveis guerras entre infinitos reis. A Espanha, por exemplo, acabara de emergir de uma guerra de doze anos, que terminou com a posse do rei Felipe V. cujo antigo palácio (séculos mais tarde destruído por um incêndio) ficava a poucas centenas de metros da Calle de Cuchilleros. Nessa ruela sinuosa, pegada à Plaza Mayor, existiam várias oficinas de artesãos ferreiros, muitos dos quais fabricavam facas (cuchillos), donde derivou o nome.

Ali também funcionava, desde o século 16, uma bodega, onde os locais se aliviavam do tórrido calor do verão madrileno, mas que, naquele ano de 1725, foi posta abaixo para a inauguração da nova taverna. Um prédio então novinho em folha foi erguido no local, preservando-se apenas a cave subterrânea, que existe até hoje e é o salão preferido pelos habitués do Botín atual.

Mas o verdadeiro marco da inauguração foi a instalação do forno decorado com azulejos, destinado a assar pratos típicos da Província de Castilha. Ele está lá ainda hoje. As famílias que se sucederam na direção do estabelecimento nos séculos seguintes sempre apostaram que a qualidade do forno foi a responsável pela longevidade do Botín. E, embora algumas outras coisas tenham mudado, como a extinção do alojamento para hóspedes, que também funcionou no prédio até 1860, o forno continuou lá, com sua grande boca incandescente tragando carnes cruas e devolvendo-as deliciosamente crocantes. O Botín nunca foi, nessa trajetória, uma casa de nobres.

A aristocracia da Casa de Borbón passava ao largo da rua dos artesãos, fazendo muxoxos. A plebe, porém, se esbaldava na taverna, produzindo montanhas de pratos sujos para aborrecimento dos serventes de cozinha. Entre eles, um certo Francisco de Goya e Lucientes, que exercia seu ofício de má vontade, dizendo aos colegas que um dia gostaria de se dedicar à pintura. Como se sabe, o Botín acabou perdendo um lavador de pratos sofrível. Em compensação, a humanidade ganhou de Goya algumas das mais esplêndidas obras de arte já realizadas.

O Botín de hoje é um resultado dessa legenda, mas continua fiel às suas raízes, com preços acessíveis a plebeus, bom vinho e alegria às noites, quando os trovadores invadem seus salões com estranhos instrumentos castelhanos. Sua piéce de resistance ainda é o cochinillo asado, um leitãozinho de 21 dias que por 2 250 pesetas (cerca de 20 reais) leva o gourmet ao sétimo céu. Para acompanhar, peça um vinho de Rioja (recomendado pelo próprio Hemingway) e arremate com um surtido de buñuelos, uma espécie de sonhos recheados com sorvetes de três sabores. Quando você sair de lá, terá compreendido o porquê da vida longa do Botín. E só vai lamentar não poder voltar, por exemplo, no século 23. Porque ele certamente estará lá.

O apetite de um certo senhor Hemingway

Na cena final do livro The Sun Also Rises, os personagens Brett e Jake almoçam no Botín. "É um dos melhores restaurantes do mundo. Nós comemos um leitão tostado e bebemos rioja alta ", diz Jake. "Meu Deus, que refeição você comeu", espanta-se Brett. E a cena prossegue até o livro acabai; algumas linhas depois.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway que viveu intensamente e suicidou-se no início dos anos 60, imortalizou o Botín nesse parágrafo. O que representa muito nas palavras de um notório bon vivant, curtidor dos prazeres mundanos. O Botín não foi o único restaurante de Madri em que Hemingway comeu, e inúmeras tavernas vizinhas juram que ele as visitou também. Aliás, em toda a Calle de Cuchilleros, os restaurantes exibem fotos de personalidades que vão de presidentes a artistas, de Ursula Andress a Gabriel García Marques, de Peié a Nelson Ned.

Mas a presença oficial de Hemingway, embora anunciada em cada casa, só está comprovada, através de literatura, pelo Botín. Para escapar da polêmica, o restaurante El Cuchi, que fica bem ao lado do Botín, decidiu inovar. Em letras garrafais, mandou gravar na entrada: "Hemingway nunca comeu aqui." E ponto final.

Fonte: POR RONNY HEIN Matéria da Revista Viagem e Turismo de Março de 1996.






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